13.6.14

lagarteando


Denomino este formato de trabalho de pílulas audiovisuais.
Pilula = drop, gota, pingo, ideia, síntese, osso de uma questão.

orbitando

 
 

elevação sonora

Este trabalho surgiu em 2012 com uma série de pílulas sonoras que foram veiculadas na Mobile Radio da 30.ª Bienal de São Paulo - que contava com uma estação instalada no prédio do Ibirapuera e um site de transmissão durante o período da mostra. Em 2013 foi apresentado um desdobramento do trabalho no Museu de Arte Contemporânea/RS com o projeto Elevação Sonora a partir da transmissão de algumas destas pílulas sonoras em elevadores.




https://soundcloud.com/vivianegueller/eleva-o-sonora

19.6.13

Staccato

As mãos do maestro desenham linhas no ar, suite que perpassa minha espinha. Escolhi uma roupa para a ocasião, um acessório, qualquer coisa para me arrancar do cotidiano. Mas só percebo quando na porta de casa, amor complexo, quis tê-lo mais perto do que deveria.

No intervalo, lágrimas que não se sabem esconder, ele pertuba-se com sua delicadeza. Precisava entender aquela sensibilidade. Ela acenou que deveriam ir embora, ele prolongava-se, tentando entender como podia ter se apaixonado por uma mulher determinada, contundente porém frágil. Para tudo existia um lugar no mapa de suas sensações. Tinha de descobrir qual o dela.
Era cheio de teorias que o protegiam do mundo,
até encontrá-la.

Cheguei exausta, massageei meus pés e fiquei imaginando como seria se ele estivesse ao meu lado. Melhor assim, se viesse, bagunçaria minha sensatez. Sujeito difícil, narcisista. Sou seu barômetro – ele reluta contra minha influência, volta a fazer suas considerações sobre cada coisa que reflito. É pretencioso e tem dificuldade em expressar afeto. Gosto quando sob seu escudo, emerge uma fresta do sensível. Flor do cactus, ele me captura. Me procura, me encontra, conhece minha rotina, me acha em casa quando quer. Me faz rir, me diverte, afasta minhas neuras e me humilha. É um homem forte, imperfeito. Que me traz para mim. Que me parte o coração por sua brutalidade. E me refaz. Já não sei se preciso dele ou se é parte de mim. Carrego um bocado do que vivemos juntos. Estar perto é apenas a confirmação. Nos agredimos, fomos ignorantes. E não há nada que não superamos. Nossa conversa tem um ar supérfluo, num instante descamba para o essencial, para o que somos e queríamos. Quando ele vai embora, fico triste, tristeza muda, sem choro. Eu o amo sem posse.

Um homem arranha acordes, das palavras brotam melodias – as notas aderem à pele, atravessam os poros. Um texto/ trilha: trama de pespontos onomatopéicos. Vozes, às vezes súplicas, que transportam para um mundo mágico, encantamento talvez utópico. E então você se pergunta se está realmente lendo.



4.11.11

como uma onda

me aproximo
muro-trapiche
em pedra

há algas no caminho
escorregadio medo da queda
se as ondas avançarem
me ejetam pro espaço

peço licença
um ciclo se fecha a água
viagem à ilha desconhecida
estibordo e transbordo
concretizo irrealidades

sento na minha frente
ouço o corpo que plasmei
transmutar-se
sob minhas mãos
silencio-a mar

9.8.11

BACIELMO






Estamos sentados em frente a um par de janelas que descortinam araucárias, fundo azul celestial nos campos de cima da serra. Aqui dentro, vinho, acepipes e as aventuras no além-mar de um homem que sonha. O cavaleiro andante é arguido por fazer passar bacia por elmo em uma batalha. Ele aventura-se e (re)inventa-se em cada oratória, um fidalgo que perdeu a razão. Seu fiel escudeiro, para acabar com o debate, propõe: trata-se de um bacielmo. Somente 3 séculos depois, por outro iconoclasta, é que viria à tona a ideia de ready made, da apropriação do urinol fez-se a fonte.

Nossa caverna é topázio, retornamos para lá após um passeio pela cidade dos gnomos. Numa esquina, miragem. Me deparo com a Importância de Viver, lições sobre o ócio, sobre como sentar-se e a sobre a prática de produzir fumaça. Ao lado, uma casa de chá onde comemos, bebemos e nos aninhamos ao sol. Mas como nem tudo é magia no mundo capitalista, na hora de pagar, cartão de crédito não é aceito. Contradições de um lugar suspenso no espaço-tempo.

Fazemos o retorno no Lago São Bernardo em direção à Casa de Pedra*, logo a promessa de imersão se concretizará, eliminaremos as impurezas no hamam incrustado no bosque. Do outro lado, há uma indicação para o refúgio do lago, 15 anos antes ainda menina. Sonhos compartilhados, as bênçãos do Rinpoche e logo adiante terravista. Hoje, uma tremenda diferença temporal, mistura de fluidos em notas dissonantes e harmônicas.

Retornamos ao topázio, palavra derivada do grego que significa buscar. E assim permanecemos. Buscando-nos um ao outro sob uma pedra semi-preciosa.

Chove nos campos de cima, mas daqui de cima já não se pode saber.


* A Pousada Casa de Pedra está localizada em São Francisco de Paula – RS. http://www.pousadacasadepedra.com/

3.5.11

multigraphias

Aterrisso
Já não vejo da paisagem
Os contornos de quando parti
Encontro
Rajadas de vento pelas costas
Um sol que desconforta
Permaneço
A liberdade te aprisiona
Sigo caminho imóvel
Retorno
Supressão de horizonte
Verticalizamo-nos

30.10.10

um norte


contracapa ZH 25/10/10



 


23.8.10

Julho

Esta publicação marca o solstício de inverno do Projeto Calendário no meu blog. Originalmente é produzida nos primeiros dias do mês subsequente. Julho foi marcado pela leitura e audição de “O Poder do Agora”, de Eckhart Tolle, que contribuiu muito para reorganizar vários conceitos que até então não se traduziam necessariamente em sensações e espiritualidade para mim. Em 04 de agosto, meu pai faleceu. Ainda não sou capaz de escrever sobre ele, sobre as diversas cenas que emergem a cada vez que minha mente (di)vaga por entre lembranças e estórias. Enquanto eu lia o último capítulo, tive um insight: vou dar de presente este livro para ele no Dia dos Pais. Quem sabe poderá ajudá-lo a aliviar suas preocupações para usufruir do que o agora reserva para ele.

No domingo dos pais, ele não estava mais aqui.
Decido então compartilhar, ainda que postumamente, alguns excertos do livro, elencado por itens como ele gostava. Uma ata espiritual para o meu pai, o primeiro homem da minha vida.

Sobre a entrega
A entrega é a sabedoria simples mas profunda de nos submetermos e não de nos opormos ao fluxo da vida. O único lugar em que podemos sentir o fluxo da vida é no Agora. Isso significa que se entregar é aceitar o momento presente sem restrições e sem nenhuma reserva. É abandonar a resistência interior àquilo que é. A resistência interior acontece quando dizemos “não” para aquilo que é, através do nosso julgamento mental e de uma negatividade emocional. Isso se agrava especialmente quando as coisas “vão mal”, o que significa que há um espaço entre as exigências ou expectativas rígidas da nossa mente e aquilo que é. Esse é o espaço do sofrimento. Se você já tiver vivido bastante tempo, certamente saberá que as coisas “vão mal” com muita freqüência. É precisamente nesses momentos em que a entrega tem de ser praticada, caso queiramos eliminar o sofrimento e as mágoas da nossa vida. A aceitação daquilo que é nos liberta imediatamente da identificação com a mente e nos religa com o Ser. A resistência é a mente.

A entrega é um fenômeno puramente interior. Isso não quer dizer que não possamos fazer alguma coisa no campo exterior para mudar a situação. Na verdade, não é a situação completa que temos de aceitar, mas apenas o segmento minúsculo chamado o Agora. Resignação não quer dizer entrega. Você não precisa aceitar uma situação indesejável ou desagradável na sua vida. Nem precisa se iludir e dizer que não tem nada errado. Você tem completa consciência de que deseja sair dali. Então reduz a sua atenção ao momento presente, sem atribuir a essa situação nenhum rótulo mental. Isso significa que não existe nenhum julgamento do Agora. Em conseqüência, não existe nenhuma resistência, nenhuma negatividade emocional. Você aceita a “existência” do momento. A seguir, toma uma atitude e faz tudo o que puder para sair da situação. Chamo essa atitude de ação positiva. Funciona muito mais do que uma ação negativa, que decorre da raiva, do desespero ou da frustração. Até que alcance o resultado desejado, você continua a praticar a entrega ao se abster de rotular o Agora.

Existe alguma coisa dentro de você que não é afetada pelas circunstâncias transitórias que constroem a sua situação de vida e a que você só tem acesso através da entrega. Trata-se da sua vida, do seu próprio Ser, que existe no eterno domínio do presente. Encontrar essa vida é “a única coisa necessária” de que Jesus falava.

Sobre a energia da mente X energia do espírito
Até que você pratique a entrega, a dimensão espiritual é algo a respeito do que você já leu, ouviu falar, escreveu, pensou, acreditou ou não. Não faz diferença. Não até que a entrega tenha se tornado uma realidade em sua vida. No momento da entrega, a energia que você desprende e que passa a governar sua vida é de uma freqüência vibracional muito maior do que a energia da mente, que ainda governa as estruturas sociais, políticas e econômicas da nossa civilização e que se perpetua através da propaganda e dos sistemas educacionais. Através da entrega, a energia espiritual penetra nesse mundo. Ela não gera sofrimento para você, para outros seres humanos ou para qualquer outra forma de vida no planeta. Ao contrário da energia da mente, ela não polui a terra e não está sujeita à lei das polaridades, que diz que nada pode existir sem o seu oposto e que não pode haver o bem sem o mal. Aqueles que continuam dominados pela mente – a grande maioria da população – não percebem a existência da energia espiritual. Ela pertence a uma outra ordem e vai criar um mundo diferente quando um número suficiente de seres humanos entrar no estado de entrega e se tornar totalmente livre da negatividade. Se a Terra sobreviver, essa será a energia daqueles que a habitarem.

Sobre as discussões
Deixe-me ilustrar como a entrega pode agir nos relacionamentos. Quando se envolver em uma discussão ou um conflito com um sócio ou um amigo, observe como você se coloca na defensiva quando a sua própria posição é atacada, sinta a potência da sua própria agressão ao atacar a posição da outra pessoa. Observe o apego aos seus pontos de vista e opiniões. Sinta a energia mental e emocional por trás da sua necessidade de ter razão e de mostrar à outra pessoa que ela está errada. Essa é a energia da mente. Você a torna consciente ao reconhecêla, ao senti-la o mais completamente possível. De repente, no meio de uma discussão, você descobre que pode fazer uma escolha e resolve abdicar da sua própria reação, só para ver o que acontece. Você se entrega. Não quero dizer abrir mão da sua reação verbalmente dizendo “está bem, você tem razão”, com um ar no rosto que diz “estou acima de toda essa inconsciência infantil”. Isso é apenas deslocar a resistência para um outro nível, com a mente ainda no comando, considerando-se superior. Estou falando de abandonar todo o campo de energia mental e emocional que estava disputando o poder dentro de você.

Sobre o trabalho
A entrega é perfeitamente compatível com tomar uma atitude, iniciar uma mudança ou atingir objetivos. Mas, no estado de entrega, uma energia totalmente diferente flui naquilo que fazemos. A entrega nos religa com a fonte de energia do Ser, e, se as nossas ações estiverem impregnadas com o Ser, elas se tornam uma alegre celebração da energia da vida, que nos aprofunda cada vez mais no Agora. Através da não-resistência, a qualidade da nossa consciência, e, portanto, a qualidade do que estivermos fazendo ou criando, aumenta sem medidas. Os resultados vão falar por si mesmos e refletir essa qualidade. Podemos chamar isso de “ação de entrega”. Não é um trabalho tal como nós conhecemos por milhares de anos. À medida que mais seres humanos despertarem, a palavra trabalho vai desaparecer do nosso vocabulário e talvez seja criada uma nova palavra para substituí-la. A qualidade da sua consciência neste momento é que vai determinar o tipo de futuro que você vai viver. Portanto, entregar-se é a coisa mais importante que você pode fazer para provocar uma mudança positiva. Qualquer outra coisa que você fizer será secundária. Nenhuma ação positiva pode surgir de um estado de consciência onde não existe entrega.

Sobre a atitude
Olhe para uma situação específica e pergunte-se: “Existe alguma coisa que eu possa fazer para mudar essa situação, melhorá-la ou me retirar dela?” Se houver, você toma a atitude adequada. Não se prenda às mil coisas que você vai ter que fazer em algum tempo futuro, mas na única coisa que você pode fazer agora. Isso não significa que você não deva traçar um plano. Planejar talvez seja a única coisa que você possa fazer agora. Mas certifique-se de que você não vai começar a rodar “filmes mentais”, se projetar no futuro e, assim, perder o Agora. Talvez a atitude que você tomar não dê frutos imediatamente. Até que ela dê, não resista ao que é. Se não houver nada que possa fazer e você também não puder escapar da situação, use isso para poder ir mais fundo na entrega, mais fundo no Agora, mais fundo no Ser. Quando entra nessa eterna dimensão do presente, a mudança sempre acontece por caminhos estranhos, sem a necessidade de uma grande quantidade de atitudes da sua parte. A vida se torna proveitosa e cooperativa. Se fatores internos como o medo, a culpa ou a indolência impedem você de tomar uma atitude, eles vão se dissolver na luz da sua presença consciente.

Sobre a resistência
Comece por admitir que é resistência. Esteja lá quando a resistência aparecer. Observe de que modo a sua mente a cria, que nome dá à situação, a você mesmo, ou aos outros. Observe o processo de pensamento envolvido. Sinta a energia da emoção. Ao testemunhar a resistência, você vai verificar que ela não tem nenhum propósito. Ao focalizar toda a sua atenção no Agora, a resistência inconsciente passa a ser consciente, e isso é o fim dela. Você não pode estar infeliz e consciente. Se há infelicidade, negatividade ou qualquer forma de sofrimento, significa que existe resistência, e a resistência é sempre inconsciente. Eu tenho certeza de que posso estar consciente da minha infelicidade. Você escolheria a infelicidade? Se não escolheu, como ela apareceu? Qual é o propósito dela? Quem a está mantendo viva? Você diz que está consciente da sua infelicidade, mas a verdade é que você está identificado com ela e mantém vivo esse processo de identificação, através de um pensamento compulsivo.

Tudo isso é inconsciência. Se você estivesse consciente, quer dizer, totalmente presente no Agora, toda a negatividade iria se dissolver quase instantaneamente. Ela não conseguiria sobreviver na sua presença. Só consegue sobreviver na sua ausência. Nem mesmo o sofrimento consegue sobreviver muito tempo diante da presença. Você mantém a infelicidade viva quando dá tempo a ela. Esse é o sangue dela. Remova o tempo, concentrando uma percepção intensa no momento presente, e ela morre. Mas você quer mesmo que ela morra? Você já teve mesmo o bastante dela? Quem você seria sem ela?

Sobre o não fazer nada
Tendo estabelecido isso, “não fazer nada” quando estamos em um estado de intensa presença é um poderoso transformador e curador de situações e de pessoas. No taoísmo, existe a expressão wu wei, que é comumente traduzida por “atividade sem ação” ou “sentar-se silenciosamente sem fazer nada”. Na antiga China, isso era considerado como uma das mais elevadas conquistas ou virtudes. É radicalmente diferente da inatividade, no estado comum da consciência, ou melhor, da inconsciência, que tem raízes no medo, na indolência ou na indecisão. O verdadeiro “fazer nada” implica uma não-resistência interior e um intenso estado de alerta. Por outro lado, caso haja necessidade de ação, você não vai mais reagir a partir da sua mente condicionada, mas vai responder a uma situação com a sua presença consciente. Nesse estado, a mente é livre de conceitos, incluindo o conceito da não-violência. Então, quem pode prever o que você vai fazer?

Sobre o ego
O ego é esperto, portanto, você tem de estar alerta, presente e ser 100% honesto consigo mesmo para verificar se abandonou realmente sua identificação com uma posição mental e se libertou, assim, da sua mente. Se você se sentir leve, livre e profundamente em paz, é sinal de que você se entregou completamente. Observe então o que acontece à posição mental da outra pessoa, já que você não mais a energiza ao oferecer resistência. Quando abrimos mão da identificação com as nossas posições mentais, começa a verdadeira comunicação.

O ego acredita que a nossa força reside em nossa resistência, quando, na verdade, a resistência nos separa do Ser, o único lugar de força verdadeira. A resistência é a fraqueza e o medo disfarçados de força. O que o ego vê como fraqueza é o Ser em sua pureza, inocência e poder. O que ele vê como força é fraqueza. Assim, o ego existe num modo contínuo de resistência e desempenha papéis falsos para encobrir a “fraqueza”, que, na verdade, é o nosso poder. Até que haja a entrega, a representação inconsciente de determinados papéis se constitui em grande parte da interação humana. Na entrega, não mais precisamos das defesas do ego e das falsas máscaras. Passamos a ser muito simples, muito reais. O ego não sabe, é claro, que somente quando deixamos de resistir, quando nos tornamos vulneráveis, é que podemos descobrir a nossa verdadeira e fundamental invulnerabilidade.

A entrega não transforma aquilo que é, ao menos não diretamente. A entrega transforma você. Quando você estiver transformado, todo o seu mundo fica transformado, porque o mundo é somente um reflexo. Se você se olha no espelho e não gosta do que vê, tem que ter enlouquecido para agredir a imagem no espelho. É exatamente assim que você age quando está em um estado de não-aceitação. E, naturalmente, se você agride a imagem, ela ataca você de volta. Se você aceita a imagem, não importa qual ela seja, se tem uma postura amigável em relação a ela, a imagem não consegue não se tornar amigável em relação a você. É dessa forma que você consegue mudar o mundo.

Sobre a doença
A doença não é o problema. Você é o problema, enquanto a mente estiver no controle. Quando você estiver doente ou incapacitado, não sinta que fracassou de alguma forma, não sinta culpa de nada. Não culpe a vida por tratar você tão mal, mas também não se culpe de nada. Tudo isso é resistência. Se você tem uma doença grave, use-a para alcançar a iluminação. Use qualquer coisa ruim que acontecer na sua vida para alcançar a iluminação. Retire o tempo da doença. Não dê a ela nenhum passado ou futuro. Deixe-a forçar você para a percepção intensa do momento presente. E veja o que acontece.

Não estou querendo dizer que você vai ficar feliz em uma situação dessas. Não vai. Mas o medo e o sofrimento vão se transformar em uma paz interior e uma serenidade que vêm de um lugar muito profundo, do próprio Não Manifesto. Essa é a “paz de Deus, que ultrapassa todo o entendimento”. Comparada a isso, a felicidade é quase uma coisa superficial. Com essa paz radiante, vem a percepção – não no nível da mente, mas dentro das profundezas do seu Ser – de que você é indestrutível, imortal. Isso não é uma crença. É uma certeza absoluta, que não precisa de uma manifestação exterior nem de qualquer prova.

Sobre o sofrimento
Aqui está a sua segunda chance de entrega. Se você não consegue aceitar o que está lá fora, aceite então o que está dentro. Isso quer dizer, não resista ao sofrimento. Permita que ele esteja ali. Entregue-se ao pesar, ao desespero, ao medo, à solidão, ou a qualquer forma que o sofrimento assuma. Abrace o sofrimento. Veja, então, como o milagre da entrega transforma o sofrimento profundo em uma paz profunda. Essa é a sua crucificação. Permita que ela seja a sua ressurreição e ascensão ao céu.

A aceitação do sofrimento é uma viagem em direção à morte. Encarar o sofrimento profundo, permitindo que ele exista, colocando a sua atenção sobre ele, é entrar na morte conscientemente. Quando tiver morrido essa morte, você perceberá que não existe morte e que não há nada a temer. Só quem morre é o ego. Imagine um raio de sol que se esqueceu que é uma parte inseparável do sol, acredita que precisa lutar pela sobrevivência e, assim, cria e se apega a uma outra identidade diferente do sol. Será que a morte dessa ilusão não seria incrivelmente libertadora?

Se você pensa que precisa de mais tempo, você terá mais tempo – e mais sofrimento. O tempo e o sofrimento são inseparáveis.

Ninguém escolhe o problema, a briga, o sofrimento. Ninguém escolhe a doença. Elas acontecem porque não existe presença suficiente para dissolver o passado, ou luz suficiente para dispersar a escuridão. Você não está aqui por inteiro. Você ainda não acordou. Nesse meio tempo, a mente condicionada está governando a sua vida.

7.7.10

Junho

Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Redondilhas de Babel e Sião - Luis de Camões

























 

8.6.10

Maio



Chegou de repente/ O fim da viagem/ Agora já não dá mais/ Pra voltar atrás
Assim meu sapato/ Coberto de barro/ Apenas pra não parar/ Nem voltar atrás
Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção
Sol girassol e meus olhos ardendo de tanto cigarro
Não lembro teu nome/ nem sei/ estrela qualquer...
Vento de Maio – Lô Borges


Nasceu em família de mãe acamada, irmão com doença terminal e pai ausente. Em casa, todos viviam com seus problemas – ainda rapaz, ensaiava os seus. Na idade adulta, trocou as preocupações da casa materna para as do lar que construía junto à esposa e filhos. A idéia da doença era substituída pela ambição. Enquanto a mulher erigia castelos, ele se endividava. Para se distrair, criava mentalmente números e cálculos, sistemas binários de acordo com problemas aritméticos que resultavam em outros e geravam cifras cada vez maiores. Queixava-se de suas preocupações – tampouco saberia viver sem elas.

Vou degustando o vinho com sede, a madrugada avança e estive tensa. Aos poucos me entregando para aquela sensação de torpor, objeto de Dionísio que sou. Fazemos amor livre, intenso, sou Jamie, você Hugo. Nos despedimos, tomo um café para exercer o desapego. Te molesto? De vermelho, a tarde passou pra azul. Sentados ali, entre a avenida Paulista e a Piazza di Spagna, você descreve minhas vestes de camponesa. É época das vindimas. Os cachos ainda mais livres, a voz grave te captura. Ouço o piano e sigo as notas. O som, vindo de cima, leva o pianista e a cauda imponente em direção ao céu. Libertango etéreo, o fundo infinito tem a harmonia de Piazzolla. Raros interstícios de entendimento. Carro, metrô, ônibus, corredores, vozes no alto falante. Perco a conexão. Estive sonhando e preciso acordar.

Por favor, fique. Estou desesperado. Essa angústia não passa. Vou morrer. Estou morto. Não consigo respirar. Você ligou para o médico? Sinto dor. Muita dor. O que foi mesmo que ela disse? Fiquei tonto. Vamos para casa, por favor. Não consigo caminhar. Ouço um zunido no ouvido. Mas o quê? Não sei que dia é hoje. Ah, teu aniversário...

Saio de casa, atravesso a rua Batataes em direção à Pamplona. Vou pegar um ônibus. Mas é domingo, decido ir a pé, do Menino Deus a Cidade Baixa são apenas algumas quadras. Somos dois artistas, questionamos muito, vasculhamos entendimentos. Não falamos sobre arte. Falamos sobre vida, morte, felicidade. Sobre sexo e romantismo. Você está cheio de dúvidas, foi precipitado. Compartilho minhas dinâmicas, você me agradece, que bela surpresa nossa conversa. Sonho com 2001, e então com 2005, tentando encontrar o ponto de fuga: todos me parecem anos de um mesmo vetor. No princípio, eram apenas átomos que em condições de temperatura e densidade específicas aglomeraram-se em moléculas. Estruturas soltas no espaço, num instante singular encontraram-se e numa cadeia crescente, geraram vida. Monolito, Hal, útero. Parcerias evolucionárias. Numa das realidades paralelas, eu estaria agora na vida acadêmica. Chegamos no segundo Cabernet, você acha mesmo que poderia ter alcançado essa liberdade de criação se limitada por uma lógica central a que uma tese sempre retorna? Não fosse pela arte (ou pela vida), seríamos Livy e Lloyd.

Quando jovem, liderou seu centro acadêmico e sua comunidade. Apaixonado pelos números, andava com música a tiracolo. Calculista renomado, estrategista. Eram festas intermináveis, coquetéis, recepções, viagens. Vivia para os projetos, para o próximo desafio que estava por vir. E ele veio, cavalo galopante, foi derrubando uma a uma de suas conquistas. Consultou psiquiatras, astros, religiões. Enveredou pela antroposofia, fez retiros, substituiu Ernest Heminghway por Rudolf Steiner. Depois numerologia, respiração alotrópica, renascimento, guerreiros do coração, reiki, espiritismo. Mas era aniversário da esposa, quem sabe a levaria para jantar no cassino e a sorte no jogo o libertaria? Os sentidos das coisas, um a um, iam escapando. O laço indutivo esquecera na academia.

A Osvaldo Aranha está parada. Um passo a frente, por favor. No ônibus os passageiros comentam sobre um acidente no túnel Conceição, o mesmo onde há uma semana estudantes munidos de vassouras, baldes e água escreveram “Por uma Porto Alegre limpa” em paredes imundas. Pichação às avessas. Aos poucos, os passageiros vão conseguindo se acomodar, passar pela roleta e alcançar seus destinos. Minutos adiante, a cidade toda estará congestionada.

3.5.10

Abril




“Como é difícil
Pai, abrir a porta
Essa palavra
Presa na garganta
...
Esse pileque
Homérico no mundo
De que adianta
Ter boa vontade
Mesmo calado o peito
Resta a cuca
Dos bêbados
Do centro da cidade...

Quero perder de vez
Tua cabeça
Minha cabeça
Perder teu juízo
Quero cheirar fumaça
De óleo diesel
Me embriagar
Até que alguém me esqueça”

Calice - Chico Buarque



Primeiro ato
Terminar a matéria, publicar no site, buscar a mala, enfiar no carro. Dali a algumas horas, penetráveis, bólides e parangolés. Em busca de um café qualquer para colocar A conversa em dia. À noite, sessão corredor, títires, boi da cara preta, carioquismos e padoca.

Antes da pop art, atraque na cracolândia. Incrédula, sigo caminhando parada. Para almoçar às 17h - é dia santo - balcão com vitrine, motoristas, prostitutas, travestis; metáfora da cidade que nunca dorme. Quando é madrugada, somos Caliban, Sycorax e Puck - vidas com rumo, suspensos pela incerteza. Na estação de metrô, coca-cola e insight.

O dia no parque está chuvoso. Mesa-redonda, várias gerações, conversas-síntese no buffet. Anarquitetura, energy trees, fendas e colapso do espaço urbano. Para chegar no clube de jazz, caminhar apenas. Vinho, arte e internet. Todo encontro casual é marcado. Num estalar, domingo. É preciso resistir às divagações e partir. Do avião para o hospital.

Segundo ato
Uma cirurgia por diversas vezes adiada. A mãe já não suporta a gravidade. Consigo levá-la comigo, distraí-la com seriados e projetáveis. Na cama, a luz permanece acesa até a madrugada. “Vamos, então, você e eu / Quando a noite estiver estendida contra o céu / Como um paciente anestesiado numa mesa”.

Alguém passa por aqui e me re(conhece). Faz 14 anos, ao meu lado, em imobilidade desesperada como agora está o pai.

Terceiro ato
Estou em território troppo sensibile. O aniversário de 5 anos é para mim de 11. Revisito todos os cantos, retorno aos fundos, ao santuário. A subida pela escada, minha ascese diária à utopia. Sons hipnóticos, trip-a-delic e criação coletiva. Convívio definitivo com o amigo-irmão-pai - termômetro, escudo, inspiração. Da janela da livraria, um clio vermelho ronda meu castelo. No palco, jazz, bossa nova, coral, que é de Paulinho, que é de João, que é de ninguém. (Aquele lugar é meu e alheio a mim). Os pilares, as fotos dos tantos eventos em direção à sacada, aos vitrais. A porta do castelo está fechada.

25.4.10

Como o Twitter tem sido utilizado para criar e recriar cultura

Fui uma das entrevistadas nessa matéria, publicada no Jornal O Globo (RJ) de hoje (25.04.2010).



Colaboração com os seguidores nas artes plásticas e no cinema

Pesquisador questiona inovação da ferramenta para criação artística

O uso do Twitter para a criação literária é o caminho mais óbvio da ferramenta, mas não é o único. O diretor Giuliano Chiaradia foi além e utilizou o microblog para fazer um filme, o curta-metragem “Relações virtuais”, e um videoclipe, para a música “O que você sempre quis”, da banda Stevens.

No caso do curta, a protagonista dialogava em tempo real, durante as gravações, com seus seguidores. No clipe, foram os fãs que montaram o roteiro a partir de trocas de mensagens pelo site.

— A expressão em 140 caracteres marca o dinamismo da época em que vivemos — diz Chiaradia, que atualmente desenvolve conceitos e formatos para novas mídias na Rede Globo. — O interessante do Twitter é a resposta imediata.

Mais do que o imediatismo, a jornalista e artista plástica Viviane Gueller buscou no Twitter a não linearidade da informação. Viviane desenvolve um trabalho denominado por ela de “arte-reportagem”.

Entre outra atividades, ela distribui uma newsletter eletrônica, a “Rodapé”, em que compõe textos, imagens e títulos como uma notícia de jornal, mas numa ordem que desconstrói o que seria uma notícia. Com o Twitter, ela passou a também limitar sua arte a 140 caracteres, com mensagens do tipo “Mulher britânica ganha sotaque chinês após enxaqueca” ou “Cientistas alemães criam sistema que controla carro com os olhos”.

— O trabalho acontece em várias plataformas, são notícias que levam para outro lugar. O texto gera uma imagem, e cada leitor descobre coisas novas. O Twitter se prestou muito a isso — explica Viviane.

A dúvida, porém, é saber o quanto as criações pelo Twitter se diferenciam de criações em outras aplicações da internet ou até de criações físicas. O pesquisador Silvio Meira, especialista em tecnologia da informação, acredita que o que tem sido feito é um “discurso normal através de uma ferramenta anormal”.

— Contos em 140 caracteres feitos no Twitter são a mesma coisa de contos em 140 caracteres escritos fora do Twitter. Num filme, por mais que os seguidores colaborem com o roteiro, ainda haverá alguém assumindo o papel de diretor central. E este é um papel que ninguém deveria assumir no Twitter. Seu discurso é fragmentado, são fragmentos que alguns colam, e outros não colam. Ainda não vi alguém fazer isso bem como arte — diz Meira. — Só que isso não significa que não é possível.
Eu não sou artista para dizer como seria, mas acredito na criatividade dos artistas.

 

6.4.10

Março

"É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
...
esto, oco, ouco, inho, aco, idro, ida, ol, oite, orte, aço, zol"

Águas de Março - Tom Jobim


O despertador toca diariamente às 7h15. Função soneca ativada pelo menos umas 5 vezes até que realmente o corpo se prepare para esboçar alguma mobilidade. Frutas na mesa, dois pães na torradeira, tv ligada no noticiário ajuda a entrar em contato com o mundo externo. Sob uma brisa de 25°, a civilização começa a voltar a Petit POA.

Sentado à frente do computador, vislumbrando versões do futuro (ou nenhum futuro) para si mesmo, mantendo as aparências. Digita, canta e atende o telefone. Vezemquando consegue substituir bege, madeira e luz incandescente por um par de olhos verdes, um sorriso ou um e-mail em afinidade eletiva.

À noite, dançar espantaria os incômodos acumulados no corpo-cadeira durante a semana. Dançar, dormir, acordar, fazer amor, caminhar. Mas o compasso do tédio-impotência-desilusão não define ritmo algum. Disritmia. Fixação da onda mental do espírito comunicante.

Então, numa noite qualquer tudo pulsando num imenso vazio, coisa saindo do nada, indo pro nada. Vodka, sarcasmo e um salto no abismo. Penas cor púrpura, deixa o deserto e junta alguns ramos aromatizados. Uma voz melodiosa que se vai se tornando triste. Autocombustão.

Mas é ao ler na página de horóscopo do jornal, aquela mesma em que são publicadas as palavras cruzadas e os quadrinhos, que o narrador encontra, finalmente, o sentido que vinha buscando em cores, odores e amores: “O desconforto é de origem desconhecida, é uma sensação difusa sobre a qual não adianta debruçar-se e refletir para compreendê-la, pois isso a prolongaria desnecessariamente. Trate o desconforto com indiferença”.

1.3.10

Fevereiro



Soneto Contrariado

Por ser o cedo tarde e o tarde cedo;
por ser tarde a manhã e a noite dia;
por ser gostosa a dor, triste a alegria;
por serem ódio amor, coragem medo;

Se o plágio é mais invento que arremedo;
se exprime mais virtude o que vicia;
se nada vale tudo que valia;
se todos já conhecem o segredo;

Por ser duplipensar barroco a língua;
por menos ter aquele que mais quer;
se a falta excede e tanto abunda a míngua;

Por nunca estar o nexo onde estiver,
desdigo o que falei e a vida xingo-a
de morte, se a cegueira é luz qualquer.

Glauco Mattoso




Perdi a conta de quantos dias passei sobrevivendo a Porto Alegre. Noites mal dormidas, ruídos do ventilador, a água escorre quente, o ar não circula. O calor, em excesso, deforma.

Um diagnóstico precipitado. Pressão ocular elevada, suspeita de glaucoma, uma doença silenciosa. Fixo meus olhos (olho com tal arte que esqueço olhar olhando) nos teus (imperfeição genética). A fixidez é momentânea. Você teme e aninha-se em mim. Repito teu nome, mas chamo o outro solstício. O calor, em excesso, paralisa.

Brindamos a Hypnos, uma noite de son(h)o, finalmente. Antes que o sol deixe aquário, levarei comigo a mensagem na garrafa. Queria te trazer aqui para o centro do meu peito, falar tonterias, rir à toa, uma parte em mim agora teima em se tornar adulta. O calor, em excesso, amor(tece).

1.2.10

Janeiro





Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial, industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui por diante vai ser diferente.
Carlos Drummond de Andrade


Nos primeiros raios do primeiro dia do ano, sentada na pedra do arpoador, assisti incrédula o céu travar uma batalha entre nuvens e o sol que teimava em nascer. Enquanto observava, tentava transpor em palavras (ainda que mentais) as imagens que se formavam. Os movimentos sutis e simultaneamente rápidos deram uma profundidade ao céu que até então nunca vira. Abóboda celeste, naquele instante não havia linha de horizonte, tantas camadas de cores e texturas me traziam algo em suspensão. Mesmo que tentasse registrar com a minha câmera (a única ali era a 1.3 do celular), nada seria mais real que a imagem de convulsão celestial com tons de fábula gravada na minha retina. No dia seguinte na mesma praia do arpoador, vi o sol se por ao mar.

O ano iniciou cheio de promessas, de pedidos, de cumplicidade. Na minha casa, aos poucos criando personalidade depois da recente mudança, havia flores, música e mel. Algo tão doce estava porvir, enquanto no noticiário queda de ponte, enchente avassaladora, terremoto em escala inédita. Padrasto espanca bebê com livro de Dickens, abandona a família, mas volta para buscar o relógio esquecido na cabeceira da cama; mulher é violentada por seu parceiro, costelas quebradas, hematomas, ele estende algumas roupas no varal antes de dar continuidade à surra – após extrair tudo da natureza, o homem se volta contra seu semelhante. Desaprendeu a civilidade, o diálogo, o afeto. Quando chegará a tão esperada Era de Aquário para nos redimir de tamanha distorção de valores?

Nasci no primeiro mês do ano, 25 de janeiro, mesmo dia de Tom Jobim, da cidade de São Paulo e do meu grande amigo Sérgio Heineck. O dia do meu ano novo foi repleto de votos queridos, o inferno astral para o qual não dei muita atenção tinha de terminar. Alegria e angústia, era preciso encarar o ritual de passagem – havia algo ali maior do que eu, um instinto de sobrevivência, a corrente de Pandora, a árvore das almas lançando sementes no ar.

No último fim de semana do mês, vi a lua nascer no mar. Lua cheia, sol noturno, a mesma batalha do primeiro dia do ano para se desfazer das nuvens. E lá está ela, laranja-rósea emergindo de uma maré baixa para dali a pouco tornar-se etérea, translúcida. A luz agora denuncia apenas contornos, é discreta, sutil, não expõe (des)enganos. Caminho lentamente pela beira-mar ninbada pela lua – uma nuvem orvalha hidromel, há freixo e olmo, filha de nove ondas dobro a paisagem no meu bolso. Já estamos em fevereiro.

2.11.09

Oficina da Bienal reúne músico, engenheiro, jornalista e funcionária pública

Cassio Maffazzioli

Rafael Terra

Walter Karwatzki

Simone Figueiredo



De que se alimenta a boca-de-lobo? A indagação é de Moisés Xavier, um dos participantes da primeira edição da oficina de arte-reportagem, que ocorreu dia 24/10, na Associação Chico Lisboa. Apesar do dia chuvoso só dar trégua no pôr-do-sol, a oficina mobilizou fotógrafo, jornalista, engenheiro, funcionária pública e músico. Rafael Terra escolheu o ponto de vista mediado pelo guarda-chuva; Moisés Xavier fez poesia com a boca-de-lobo e fotografou cidades em música; Simone Figueiredo fez enquete e descobriu as coisas essenciais da vida; Cássio Maffazzioli mergulhou na aferição dos fluidos e emergiu no particular; o arauto da Associação Chico Lisboa, Walter Karwatzki, compartilhou dores e olhares com acento alagoano.

Ministrada pela artista plástica e jornalista Viviane Gueller, a oficina tem mais duas edições: nesse sábado (7/11) e dia 21/11. Com essa oficina, Viviane propõe compartilhar a arte-reportagem, um procedimento autoral no qual vem operando seu processo criativo. Expansão e transgressão das fronteiras da reportagem na infinita possibilidade que o campo das artes oferece. A oficina acontece na Associação Chico Lisboa e faz parte do projeto “Mapas Práticos – espaços em disponibilidade”, um mapeamento dos ateliês privados (individuais ou coletivos), institucionais e públicos de Porto Alegre que possuem propostas educativas no campo das práticas artísticas contemporâneas. Com o projeto, a Bienal pretende valorizar o trabalho destes profissionais, criando espaço para o diálogo e o intercâmbio entre artistas e arte educadores com a comunidade local. Segundo a curadora pedagógica Marina De Caro, a idéia é “descentralizar a Bienal e, ao mesmo tempo, dar a oportunidade para que a comunidade conheça e usufrua o trabalho destes ateliês, mesmo depois que a Bienal terminar”. As oficinas são gratuitas e as vagas, limitadas.

A idéia é trabalhar a sensibilização, a criação e a produção artística a partir de caminhadas, deambulações, descondicionamento do olhar, registros fotográficos e textuais, estudos e conversas. Para tanto, são organizadas saídas pelo entorno (jardins e ruas próximas, Parque da Redenção), coletando dados e detectando possíveis pautas e/ou situações artísticas. Os participantes devem levar câmera fotográfica, celular, bloco de anotação, gravador ou o que considerarem importante para usar como base de registro e experimentação. A oficina propõe uma possibilidade de olhar com outros olhos o que nos cerca, dando uma nova dimensão para situações despercebidas no cotidiano. Resgatando, a partir da experiência criativa, um pouco da identidade humana conturbada pelo olhar cada vez mais distanciado da natureza (das coisas).

Viviane já participou de oficinas de criação literária com Alice Ruiz, Luiz Antônio de Assis Brasil e Charles Kiefer e teve alguns contos publicados em antologias. É bacharel em comunicação social (jornalismo), fez formação e teve orientação em artes visuais com vários artistas entre Porto Alegre e São Paulo (Gustavo Nakle, Felix Bressan, Maria Helena Bernardes, Christiana Moraes, Eduardo Costa, entre outros). Participou de exposições coletivas e individuais (Bienal b, Essa POA é Boa, Galeria do DMAE, CCMQ, Universidade de Brasília), recebeu o Prêmio de Incentivo à Criatividade no 16º Salão da Câmara Municipal de Porto Alegre e foi selecionada para o 58º Salão de Abril (Ceará).

O QUÊ: Oficina de Arte-reportagem com Viviane Gueller
QUANDO: sábados, 7/11 e 21/11 – das 14h às 17h
ONDE: Associação Chico Lisboa (Travessa dos Venezianos, 19)
Inscrições pelos telefones 3254 7503 e 7547 www.bienalmercosul.art.br/mapaspraticos

1.6.09

KADISH



Estou sentada à beira da cama onde minha vó passa grande parte do seu dia. Ela sorri quando me vê. Elogia minha roupa, meus brincos. Se aproxima, tateia sobre a calça que estou vestindo. Gosta da textura, me fala sobre a qualidade do tecido. Aos 13 anos de minha mãe, quando ficou viúva, foi ela quem passou a tomar conta da loja de casimiras que herdou de meu avô. No porão de casa, recebia os comerciantes, dando prosseguimento aos negócios de seu marido. Nunca mais casou nem se soube de namorado algum. Vivia para minha mãe.
No consultório do otorrinolaringologista, ela relata que algo na garganta a incomoda, “como uma folha de flandres, doutor”. Ele olha para seu filho, também médico, que não entende o linguajar daquela senhora, quase uma centenária, que crescera entre provérbios russos. A todas situações, ela faz uma aproximação simbólica, nunca direta. Translitera para o português o amor à língua da pátria. Da infância, fala sobre seu tio, o camarada Gricha, a quem sem o conhecimento dos pais, ajudava a entregar livros “subversivos” – quando começou a perceber as mudanças geopolíticas de sua amada Rússia, ele já havia sumido para sempre de sua vida. Nos primeiros anos de escola, falava apenas ídish. Com uma colega que sentava a seu lado, foi aprendendo a acompanhar as aulas e a disfarçar sua diferença. Era a primogênita de uma família que não freqüentara a educação formal, de gerações que viviam em gueto. Ao chegar no Brasil, aos 19 anos, era outra vez uma analfabeta.
Convenço-a de irmos até a sala. Quero que me ajude a escolher um dentre os vestidos que trouxe. Só assim consigo demovê-la da cama. Experimento três, ela aponta um sem hesitar e adverte que deve ser usado com um colar discreto devido ao decote. “É clássico e tem o corte perfeito para teu corpo, mas deves ter cuidado com os acessórios para não ficar vulgar”. Sorrio espontaneamente, que gene será esse que vem direto dela para mim? Atentar para detalhes, flertar com o clássico, admirar a beleza em sua forma integral pressupõe uma sensibilidade em extinção. É vaidosa e vê nas rugas marcas da vida; aponta, na coluna social, a foto de uma mulher que quase nem reconhece: a cirurgia plástica deixa as pessoas sem viço, sem expressão. Em casa, diariamente, ela pára diante do espelho e ajeita o cabelo, nas poucas ocasiões em que sai é para ir ao salão de beleza.
Levo-a de volta para o quarto. Ela me convida a ir embora. Uma jovem não deve perder tempo com uma velha, diz com minha mão entre as suas, o olhar de gata siamesa. E então, me faz comer algo e ficar um pouco mais. Lembra-se em detalhes de golpes do destino, de frustrações, das palavras não ditas e de cada uma das pessoas com quem conviveu. Sabe os horários de todos os tantos comprimidos que deve tomar ao longo do dia, vê seriados policiais no Universal Chanel, acompanha as notícias pelo jornal, recorta os textos do Liberato Vieira da Cunha e guarda-os para me mostrar. Nos últimos anos se recusa a cultivar uma vida social, lamenta ser a última viva entre seus irmãos e amigos, queixa-se da escassa visão e audição, do que come e das dores que coleciona. “Devíamos morrer em pé, com todos os nossos órgãos vitais funcionando, como uma árvore”.
Estou na porta do quarto, após várias despedidas, lamentos e conselhos. “Vai, doçura, vai cuidar da tua vida, não precisa te preocupar comigo”. Abano para ela, que da cama me manda beijos. “Mas tu voltas, não é?” Aceno com a cabeça, aprendi a ouvi-la incondicionalmente, a identificar, nas elipses que cria, amor e desprezo à vida. No hall do edifício Primavera, repasso entre o espanto e o orgulho sensações que me remetem ao imponderável daquele convívio.
O agente funerário pede que eu confira os dados no atestado de óbito. “No dia 20 de maio, aos 100 anos de idade, filha de Zeidel e Raquel...”. Palavras se descolam, pessoas e números tomam dimensões ainda desconhecidas. A morte da minha vó marca o fim de nosso ritual de conversas e silêncios e o fim de uma geração de imigrantes. O fim da sabedoria aterradora de um século, pensamento vivo de uma cultura com a qual aprendo diariamente a (re)conhecer minha linhagem e a História que nos possibilitou chegar até aqui. Tenho receio de encarar o mundo a partir de agora, sem ela. Atendo, então, a um dos seus últimos pedidos: leio Tchekhov, ainda que não seja no original, em russo, como queria. “Quando se ama, é necessário nos pensamentos sobre esse amor, partir de algo mais elevado, mais importante do que infelicidade ou felicidade, pecado ou virtude no seu sentido mais corriqueiro, ou então não se deve pensar de todo”. Ela atenta ao movimento dos meus lábios, quer evocar Tchekhov a partir de mim. Decifrará assim um estado de espírito. Nada mais será dito. Adeus família Kesler, nosso Diamant. Cheiro de borsch, silêncio e tudo.

17.12.08

cadê?




esta árvore, outrora localizada no coração do menino deus, sumiu.


se alguém souber de seu paradeiro, manifeste-se!


patrimônio da cidade, ficava em um canteiro próprio, bem no meio da rua.


three trees







24.11.08

info resíduo arbóreo



para quem já foi à exposição e/ou
comprou o livro de artista e curtiu,
recomende aos seus amigos.
esse trabalho existe para ser compartilhado,
para inspirar outras pessoas a sair por aí
e se sensibilizar com coisas que a gente olha mas não ,
com aspectos do cotidiano na cidade que usualmente
não são revelados para o olhar funcional e apressado.

  • 01/12 (segunda-feira), às 17h, na palavraria (vasco da gama, 165) e

  • 03/12 (quarta-feira), às 17h30, no atelier livre (érico veríssimo, 307) vou falar sobre essa pesquisa e o processo de trabalho que levou à publicação do livro de artista.
a exposição segue em cartaz no muffuletta (rua da república, 657 - diariamente a partir das 19h) durante o mês de dezembro;
o livro está à venda no muffuletta, na palavraria e na loja da fundação iberê camargo.

19.11.08

abertura da exposição e lançamento do livro





Escolhas



Onde passamos cegos pela pressa em direção a objetivos nem sempre conscientes, Viviane Gueller escolhe parar e, mais do que olhar, ver. Onde o natural e o cultural convivem, se chocam ou se harmonizam, Viviane escolhe um ângulo privilegiado, que parece tudo sintetizar. Onde teríamos a tentação de tudo guardar para próprio deleite, ela escolhe compartilhar.



Com essa mostra e esse livro de artista, recebemos, agradecidos, a oportundade de refazer o caminho de Viviane de mãos dadas com ela, agora vendo, compreendendo, compartilhando. Mais do que isso: recebemos a oportunidade de repensar nossas escolhas.




Eunice Gruman