1.2.10

Janeiro





Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial, industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui por diante vai ser diferente.
Carlos Drummond de Andrade


Nos primeiros raios do primeiro dia do ano, sentada na pedra do arpoador, assisti incrédula o céu travar uma batalha entre nuvens e o sol que teimava em nascer. Enquanto observava, tentava transpor em palavras (ainda que mentais) as imagens que se formavam. Os movimentos sutis e simultaneamente rápidos deram uma profundidade ao céu que até então nunca vira. Abóboda celeste, naquele instante não havia linha de horizonte, tantas camadas de cores e texturas me traziam algo em suspensão. Mesmo que tentasse registrar com a minha câmera (a única ali era a 1.3 do celular), nada seria mais real que a imagem de convulsão celestial com tons de fábula gravada na minha retina. No dia seguinte na mesma praia do arpoador, vi o sol se por ao mar.

O ano iniciou cheio de promessas, de pedidos, de cumplicidade. Na minha casa, aos poucos criando personalidade depois da recente mudança, havia flores, música e mel. Algo tão doce estava porvir, enquanto no noticiário queda de ponte, enchente avassaladora, terremoto em escala inédita. Padrasto espanca bebê com livro de Dickens, abandona a família, mas volta para buscar o relógio esquecido na cabeceira da cama; mulher é violentada por seu parceiro, costelas quebradas, hematomas, ele estende algumas roupas no varal antes de dar continuidade à surra – após extrair tudo da natureza, o homem se volta contra seu semelhante. Desaprendeu a civilidade, o diálogo, o afeto. Quando chegará a tão esperada Era de Aquário para nos redimir de tamanha distorção de valores?

Nasci no primeiro mês do ano, 25 de janeiro, mesmo dia de Tom Jobim, da cidade de São Paulo e do meu grande amigo Sérgio Heineck. O dia do meu ano novo foi repleto de votos queridos, o inferno astral para o qual não dei muita atenção tinha de terminar. Alegria e angústia, era preciso encarar o ritual de passagem – havia algo ali maior do que eu, um instinto de sobrevivência, a corrente de Pandora, a árvore das almas lançando sementes no ar.

No último fim de semana do mês, vi a lua nascer no mar. Lua cheia, sol noturno, a mesma batalha do primeiro dia do ano para se desfazer das nuvens. E lá está ela, laranja-rósea emergindo de uma maré baixa para dali a pouco tornar-se etérea, translúcida. A luz agora denuncia apenas contornos, é discreta, sutil, não expõe (des)enganos. Caminho lentamente pela beira-mar ninbada pela lua – uma nuvem orvalha hidromel, há freixo e olmo, filha de nove ondas dobro a paisagem no meu bolso. Já estamos em fevereiro.

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