31.8.07

Plástico

Era no fim de tarde que as inquietações começavam. Lá fora, uma sinfonia de pássaros, os jacarandás em flor, uma leve brisa de primavera, o galo dos ventos, a linha do horizonte. Precisava se concentrar. O barulho intermitente da geladeira, a criança berrando na calçada, o elevador. Outra semana iniciaria, segunda-feira, terça, quarta, ir ao supermercado, arrumar a casa, trabalhar, sentar em frente ao computador, manipular o mouse e o cérebro, enquadrar-se. À noite, lápis e rímel nos olhos, sorriso no rosto, conversa de botequim, o vazio. O sol ainda não se pôs, os pássaros já não sobrevoam as casas. Seu canto é ainda mais enfático que o motor dos carros, que as televisões ligadas; embalada pelos litros de cerveja, a torcida enfurecida no estádio de futebol. A cidade prescinde de nossas interdições. É preciso entreter a morte.

- Coitada da Ana, colocou 150 mililitros de silicone em cada seio e você acredita? Chegou na loja para experimentar uma blusa e a vendedora disse: “Bem, pra você que quase não tem busto deve ser tamanho P”.
- Pois é, menina, eu avisei que nesses casos é melhor já turbinar com uns 250.
- Esses dias eu tava com ela no shopping e ela não parava de comer. Depois vomita tudo.
- E a Ju, você viu? Ficou toda insegura também depois da cirurgia. Se tivesse me perguntado, eu diria para colocar mais.
Pausa de cinco segundos
- Essa escova-de-chocolate é uma maravilha.
- Melhor que a definitiva?
- Ah, sem dúvida.
- E que tal o bronze? Tomou sol no fim de semana?
- Fiz uns banhos de luz. O verão tá aí, né, amiga.
- Mas não faz mal para a pele?
- Nada...
- Humm, e eu que agora tô fazendo sessões de carboxiterapia...Celulite e flacidez já era!


As folhas da palmeira, garras finas, fiapos verde-translúcidos apontados para o chão. Um casal de pássaro brinca um sobre o outro sobre o galho, não se detém em seus lugares, a seu redor outras árvores vicejam esperança. É preciso se concentrar, uma palavra se seguirá a outra. Mãos do pensamento; texto, textura. Lugares, situações, como se chama mesmo? Nomes sugam o tutano das coisas. Com o soprar do vento, enfatiza-se os matizes crepusculares – dourado, azul, róseo. Liberdade existencial da cor. Lusco-fusco.

- Olá, querida!
- Oiiii. Então, chegou bem em casa ontem?
- Ah, mais ou menos. Me desanimei, sabe?
- Que houve?
- Duas da madrugada ter que ouvir aquelas bichas afetadas falando tanta merda. E depois bate aquela frustração. Pra falar a verdade tenho pavor daquele som bate-estaca.
- Olha, sinceramente, acho que você devia partir pra um remédio, tem várias opções por aí, fluoxetina, paroxetina e outros tantos já na terceira, quarta geração...
- Não devo ter me expressado bem. Tô contando que fiquei chateado, frustrado com uma situação específica, simplesmente um desabafo.
- É, mas é que não é a primeira vez que vejo você desanimado. E falo isso porque quero ver você bem! É um problema químico, sabe? Se a gente toma remédio para o físico, por que não fazer o mesmo para o emocional? A gente tira a lente de aumento das coisas, se concentra mais...
- Sinceramente não tô entendendo. Era apenas um papo entre amigos, uma coisa corriqueira. Não vejo onde entra o remédio nisso.
- Desculpe, acho que viajei. Devo estar psicologizando demais. Esquece, deixa assim.


O pássaro pousa no jacarandá, movimenta-se cuidadosamente. Dará seu último vôo antes de anoitecer. Observa os outros insetos que como ele marcam sua existência diária a partir de um mesmo ritual. Com um impulso desprende-se. Se pudéssemos, acompanharíamos seus gestos. As paletas dariam lugar a uma plumagem, realizando nosso desejo de decolar, de sermos irrompidos por um sopro que animaria nossos corpos, suavizando o peso da gravidade.
Nosso salto é no vazio.