8.6.10

Maio



Chegou de repente/ O fim da viagem/ Agora já não dá mais/ Pra voltar atrás
Assim meu sapato/ Coberto de barro/ Apenas pra não parar/ Nem voltar atrás
Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção
Sol girassol e meus olhos ardendo de tanto cigarro
Não lembro teu nome/ nem sei/ estrela qualquer...
Vento de Maio – Lô Borges


Nasceu em família de mãe acamada, irmão com doença terminal e pai ausente. Em casa, todos viviam com seus problemas – ainda rapaz, ensaiava os seus. Na idade adulta, trocou as preocupações da casa materna para as do lar que construía junto à esposa e filhos. A idéia da doença era substituída pela ambição. Enquanto a mulher erigia castelos, ele se endividava. Para se distrair, criava mentalmente números e cálculos, sistemas binários de acordo com problemas aritméticos que resultavam em outros e geravam cifras cada vez maiores. Queixava-se de suas preocupações – tampouco saberia viver sem elas.

Vou degustando o vinho com sede, a madrugada avança e estive tensa. Aos poucos me entregando para aquela sensação de torpor, objeto de Dionísio que sou. Fazemos amor livre, intenso, sou Jamie, você Hugo. Nos despedimos, tomo um café para exercer o desapego. Te molesto? De vermelho, a tarde passou pra azul. Sentados ali, entre a avenida Paulista e a Piazza di Spagna, você descreve minhas vestes de camponesa. É época das vindimas. Os cachos ainda mais livres, a voz grave te captura. Ouço o piano e sigo as notas. O som, vindo de cima, leva o pianista e a cauda imponente em direção ao céu. Libertango etéreo, o fundo infinito tem a harmonia de Piazzolla. Raros interstícios de entendimento. Carro, metrô, ônibus, corredores, vozes no alto falante. Perco a conexão. Estive sonhando e preciso acordar.

Por favor, fique. Estou desesperado. Essa angústia não passa. Vou morrer. Estou morto. Não consigo respirar. Você ligou para o médico? Sinto dor. Muita dor. O que foi mesmo que ela disse? Fiquei tonto. Vamos para casa, por favor. Não consigo caminhar. Ouço um zunido no ouvido. Mas o quê? Não sei que dia é hoje. Ah, teu aniversário...

Saio de casa, atravesso a rua Batataes em direção à Pamplona. Vou pegar um ônibus. Mas é domingo, decido ir a pé, do Menino Deus a Cidade Baixa são apenas algumas quadras. Somos dois artistas, questionamos muito, vasculhamos entendimentos. Não falamos sobre arte. Falamos sobre vida, morte, felicidade. Sobre sexo e romantismo. Você está cheio de dúvidas, foi precipitado. Compartilho minhas dinâmicas, você me agradece, que bela surpresa nossa conversa. Sonho com 2001, e então com 2005, tentando encontrar o ponto de fuga: todos me parecem anos de um mesmo vetor. No princípio, eram apenas átomos que em condições de temperatura e densidade específicas aglomeraram-se em moléculas. Estruturas soltas no espaço, num instante singular encontraram-se e numa cadeia crescente, geraram vida. Monolito, Hal, útero. Parcerias evolucionárias. Numa das realidades paralelas, eu estaria agora na vida acadêmica. Chegamos no segundo Cabernet, você acha mesmo que poderia ter alcançado essa liberdade de criação se limitada por uma lógica central a que uma tese sempre retorna? Não fosse pela arte (ou pela vida), seríamos Livy e Lloyd.

Quando jovem, liderou seu centro acadêmico e sua comunidade. Apaixonado pelos números, andava com música a tiracolo. Calculista renomado, estrategista. Eram festas intermináveis, coquetéis, recepções, viagens. Vivia para os projetos, para o próximo desafio que estava por vir. E ele veio, cavalo galopante, foi derrubando uma a uma de suas conquistas. Consultou psiquiatras, astros, religiões. Enveredou pela antroposofia, fez retiros, substituiu Ernest Heminghway por Rudolf Steiner. Depois numerologia, respiração alotrópica, renascimento, guerreiros do coração, reiki, espiritismo. Mas era aniversário da esposa, quem sabe a levaria para jantar no cassino e a sorte no jogo o libertaria? Os sentidos das coisas, um a um, iam escapando. O laço indutivo esquecera na academia.

A Osvaldo Aranha está parada. Um passo a frente, por favor. No ônibus os passageiros comentam sobre um acidente no túnel Conceição, o mesmo onde há uma semana estudantes munidos de vassouras, baldes e água escreveram “Por uma Porto Alegre limpa” em paredes imundas. Pichação às avessas. Aos poucos, os passageiros vão conseguindo se acomodar, passar pela roleta e alcançar seus destinos. Minutos adiante, a cidade toda estará congestionada.

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