31.8.07

Açoite

Menina da cidade, cedo conheceu o campo. De abrigo azul com listras brancas, ela corria entre porteiras, vacas e galinhas ensaiando a vida. Montava à cavalo, no início algumas vezes tombava, e sonhava com o dia que galoparia sem medo. Na infância já chegara a trotear. O carroceiro era branco, quase albino. Entre aquelas pessoas de pouca instrução, aprendia coisas que jamais poderia ensinar. O quero-quero, horizonte infinito de coxilhas, figueira centenária que ameaçava cair sobre o galpão. À noite os sons retumbavam dentro de si, a natureza se debruçando em seu sono. Via tanta estrela que jamais teve medo do escuro. Acordava cedo, saía nas invernadas. O capataz lhe mostrava como encilhar, como ajeitar melhor o pelego. Homem de traços finos sob uma barba cerrada, falava sobre ervas, tevê e imitava o sotaque do velho alemão que vivia nas redondezas. Era analfabeto e apesar da insistência do patrão não quis conhecer o mundo das palavras. Prefiro ficar com o que já sei; quanto mais aprendizado, mais infelicidade. As sombras das árvores, os capões, o céu.

Quando te amo, esqueço tuas burrices, tuas mancadas. Quando te amo, quero ouvir tua voz, quero estar perto não importa de que jeito. Quando te amo, te queria diferente.

Ela é jovem, pensa demais, sente demais, mas não vive o suficiente para sentir. Ele é homem da terra, conhece os bichos, as plantas, o lugar de cada coisa na natureza. Ela sente medo de tudo, até do medo em si. Ele é jeitoso, entende de artesania, o que passa por sua mão tem logo um destino. Se encontram no fim da tarde. Ela pensando obstinadamente sobre sua crise existencial, sentindo-se fraca e perplexa. Depois de um dia de trabalho, faca na cintura, pele de bugre, ele toma um chimarrão. Ela, se pudesse, suspenderia o tempo, quem sabe ele a distráia com suas trovas. A noite chega estrelada, Via Láctea salpicando nos olhos. Ela corre em direção ao campo para tocar o céu. Ele traz uma lona para ela se acomodar. Sentam-se e olham juntos a imensidão. Ele deita ela no pasto, ela estremecer. Abrem os olhos, cavalos se aproximam: belos, livres, eles relincham com os feromônios. O céu cospe cada vez mais estrelas decadentes de desejo. Dentro dela, ele se mantém, a natureza retumbando em seu ventre. Percebe a beleza da concepção, o universo espiralado, a vida.

Quando te amo, esqueço tuas burrices, tuas mancadas. Quando te amo, quero ouvir tua voz, quero estar perto não importa de que jeito. Quando te amo, te queria diferente. Queria teu corpo, tuas mãos, mas te queria outro. Te queria mais homem, mais inteiro, mais misturado em mim, mais fluido, mais seguro, menos escravo da ignorância, menos coitado, menos culpa, menos vergonha. Queria nós dois juntos porque nunca meu corpo se ajustou tão bem a outro corpo, nunca meus lábios mergulharam assim, tão gostoso.

Em silêncio, vem ao encontro dela. Dois vincos entre as sobrancelhas, dão-lhe um ar sério, melancólico. Traz um vinho e duas taças. Com um prego, faz a rolha girar. Ela inicia a conversa, tenta estabelecer um diálogo, ele não consegue acompanhá-la. Diz estar confuso. Quer mais uma chance. E mais uma. E mais outra. Ausenta-se, afastam-se, estranham-se. Ele a procura, envia bilhetes, ele a cerca. Segura sua mão, aproxima-se. Ao beijá-la, transpõe as diferenças. Seus dedos passeiam nela, os quadris se ajustam a ele. Sussurra juras de amor no seu corpo, explorando cada contorno, cintura, umbigo, sol no centro do universo a pulsar. Ele desvela, descompartimenta. Ela desaprendeu a vida sem ele.

Quando te amo, esqueço tuas burrices, tuas mancadas. Quando te amo, quero ouvir tua voz, quero estar perto não importa de que jeito. Quando te amo, te queria diferente. Queria teu corpo, tuas mãos, mas te queria outro. Te queria mais homem, mais inteiro, mais misturado em mim, mais fluido, mais seguro, menos escravo da ignorância, menos coitado, menos culpa, menos vergonha. Queria nós dois juntos porque nunca meu corpo se ajustou tão bem a outro corpo, nunca meus lábios mergulharam assim, tão gostoso. Te quero mas já não choro em tua ausência. Te amo mas quero do teu amor apenas a lembrança. Já não te quero com convicção. Te quero por vício, por frustração, pelo que de mim há de fraco. De modo que escrevo, vasculho fronteiras, abandono o papel: meu querer, texto-ventosa, texto-risco, textura, tecido
tacet.